Janja influencia Lula e age com autonomia no governo

29/04/2023 11:36

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Istoé

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A pessoa mais forte no governo Lula ocupa uma sala próxima ao presidente no terceiro andar do Palácio do Planalto, determina políticas de governo, escolhe ministros e coloca na geladeira os nomes da Esplanada dos Ministérios que a contrariem. Não se trata do ministro da Fazenda nem do chefe da Casa Civil, que tradicionalmente concentram o poder no Planalto, mas da primeira-dama, Rosângela Lula da Silva, a Janja, que substituiu no terceiro mandato do marido a função que era exercida nos anos 2000 por um pequeno comitê de petistas como José Dirceu, Antonio Palocci, Luiz Dulci e Paulo Okamoto. Atualmente, os titulares da Esplanada dos Ministérios são o hardware da máquina pública, mas ela é o software que dá conteúdo e alma ao governo.

Um dos principais sinais dessa nova configuração no centro do poder é a substituição do carrancudo viés sindicalista que caracterizou os primeiros governos petistas por uma forma de atuação mais leve e descontraída. Janja traduz o barulho das redes sociais para o marido, dribla as provocações digitais dos extremistas e faz a ponte com as pautas da nova esquerda, como a luta por mais diversidade e igualdade de gêneros. Vinte e um anos mais nova do que o companheiro, ela rejuvenesceu o chefe do Executivo, a quem chama publicamente de “meu boy”, e dá uma roupagem pop e moderna ao governo. Sua feição é de quem está de bem com a vida.

Desde a eleição, Janja mostrou na prática um protagonismo incomum para as primeiras-damas brasileiras. A socióloga determinou como seria a cerimônia de posse (foi dela a ideia de subir a rampa com a vira-lata Resistência, adotada em Curitiba), interferiu na queda do general Gonçalves Dias da chefia do GSI, atua na comunicação do governo, como na aprovação de peças oficiais sobre o carnaval, opina sobre a gestão da hidrelétrica de Itaipu, onde fez carreira, influencia as políticas sociais e participa de todas as viagens internacionais, inclusive com agenda própria — como aconteceu na Espanha, quando foi convidada na última quarta-feira a presidir a Rede de Inclusão e Combate à Desigualdade que será criada pela Organização dos Estados Ibero-Americanos. Mas tudo com uma ação cuidadosa nos bastidores, tentando evitar a superexposição. Ela já se queixou publicamente que recebe mais ameaças nas redes sociais do que o presidente.

À ISTOÉ, pessoas próximas à primeira-dama relativizam a sua importância e apontam que “contribuir” é o mote de sua atuação nos bastidores. “Ela não atua para formular políticas, necessariamente, isso é uma atribuição de ministros. Janja está no governo para contribuir e acho que essa é a palavra-chave. Ela tem se colocado para ser promotora de políticas públicas, para dar atenção a elas na figura da Presidência. Ela não precisa ter iniciativas próprias, está lá para ajudar a promover as ações de governo”, explica uma aliada. Essa desenvoltura, porém, tem despertado ciúmes e provocado fogo amigo. Sua ascendência sobre o marido teria afastado dele velhos companheiros como Paulo Okamoto e Franklin Martins, além de deixar à distância membros do próprio governo como Aloizio Mercadante ou a presidente do PT, Gleisi Hoffmann. Os governistas mais irritados dizem que o Planalto virou a “Casa de Janja”. Entre petistas mais experientes e até mesmo no entorno do presidente, não é raro ouvir críticas em relação a determinados episódios envolvendo a atuação da socióloga. Alguns aliados de longa data de Lula, ainda que poucos e barulhentos, reclamam do protagonismo dela em polêmicas que seriam evitáveis.

O caso mais recente envolveu a compra de uma gravata ao petista numa loja da grife italiana Ermenegildo Zegna na avenida mais luxuosa de Portugal, em viagem diplomática da comitiva brasileira. “Todo e qualquer ruído é incômodo para o governo e isso vale para a primeira- dama e para os ministros também”, resume um governista experiente. Na mesma viagem, Janja virou alvo de bolsonaristas por outro motivo: foi condecorada pelo presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, com a Grã-Cruz da Ordem Infante D. Henrique. Alguns apoiadores de Jair Bolsonaro questionam o que motivou a homenagem, mas parecem ter se esquecido do histórico de condecorações que a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro recebeu do próprio marido — só em um espaço de seis meses, foram três medalhas dadas por ele à esposa.

Aliás, são recorrentes as tentativas de traçar paralelos entre Janja a Michelle. As comparações, no entanto, não incomodam a socióloga, conforme relatam pessoas próximas. É preciso lembrar, porém, que a ex-primeira-dama, ainda que ativa em poucas políticas públicas do governo Bolsonaro, só foi valorizada, de fato, pelo ex-presidente durante a campanha presidencial, em 2022. A atual presidente do PL Mulher passou a aparecer mais na gestão bolsonarista diante das patinadas do marido com o eleitorado feminino, que representam a maior fatia de votos do País. O ex-titular do Planalto só recorreu à esposa por pressão de aliados políticos que temiam sua derrota nas urnas. Até hoje, o capitão torce o nariz para o envolvimento da companheira no mundo político. Lula, ao contrário, deu um espaço central para a esposa.

Para aliados, Janja incomoda porque foge do figurino tradicional de primeira-dama. “Todas as vezes em que as mulheres ocupam espaço e demonstram que têm direito e podem estar em todos os lugares, independentemente de qual seja a posição, isso incomoda. Contraria apenas aqueles que querem ver as mulheres silenciadas e subjugadas”, afirma a deputada federal Erika Kokay (PT), acrescentando que a socióloga veio para “ressignificar” o posto que ocupa. “Janja é uma mulher do nosso tempo. Ela está ali como companheira e esposa do presidente, mas tem uma presença na vida política com opinião, atitude. E isso incomoda os setores machistas, que acham que a primeira-dama não é para estar do lado, mas atrás do presidente”, acrescenta a deputada federal Maria do Rosário (PT-DF). “Enquanto mulher e cidadã, ela tem o direito de estar no lugar que quiser. Pela sua história de luta e trajetória profissional, o Ministério das Mulheres nunca irá tratá-la como primeira-dama, mas sim como uma aliada fundamental na construção de políticas para as mulheres”, diz a titular da pasta, Cida Gonçalves.

FIGURINO A primeira-dama causa rebuliço em Lisboa ao se dirigir a uma loja da grife Ermenegildo Zegna, no dia 21. Mais tarde, postou foto da gravata que comprou para o presidente no local (acima) (Crédito:Divulgação)

O protagonismo de Janja animou parte da militância, mas levou a um rearranjo no círculo mais próximo do poder. O único remanescente das figuras históricas de gestões passadas é Jaques Wagner, que, por opção, decidiu se afastar da rotina do Planalto ao assumir a liderança do governo no Senado. No dia a dia, é a primeira-dama quem aconselha o presidente e até mesmo o repreende sobre os mais diversos assuntos, como o escorregão na fala sobre indivíduos com transtornos mentais, que chamou de “pessoas com problema de parafuso” ao relacioná-las com casos de violência. A declaração repercutiu negativamente especialmente em comunidades que lutam pelos direitos de pessoas com espectro autista — uma causa em que a primeira-dama é engajada desde antes da posse presidencial, quando, na organização da cerimônia, vetou os tradicionais disparos de canhão para evitar o ruído exagerado. “Entre o núcleo mais próximo, é Janja quem tem familiaridade com causas novas. Ela tem conhecimento dos avanços em vários temas, das mudanças comportamentais às quebras de tabu. É alguém que tenta, ao longo da convivência com o presidente, ensiná-lo a revisar conceitos ultrapassados”, relata uma integrante da cúpula presidencial.

Acesso às redes

Em função dessa influência, é comum que atribuam a Janja decisões das quais não chegou efetivamente a participar. Um exemplo disso ocorreu durante a adoção da linguagem neutra de gênero como uma das novas práticas em cerimônias oficiais realizadas no Palácio do Planalto e nos ministérios. A abordagem chegou a ser utilizada em posses do primeiro escalão da Esplanada dos Ministérios, a iniciativa partiu dos próprios titulares das pastas e não da primeira-dama, segundo afirmam aliados. O caso provocou burburinho entre bolsonaristas e conservadores. “Isso não aconteceu, até porque não é um padrão do governo e cada ministério tem seu próprio cerimonial”, esclarecem pessoas próximas. Em contrapartida, outros feitos e vetos do governo levam a assinatura da primeira-dama. Muitos deles são relacionados às redes sociais. Ela é uma das poucas pessoas, além da assessoria do presidente, com acesso aos perfis do petista nas mais diversas plataformas. Os exemplos do engajamento com pautas são vários, a começar pelo convite para trazer a apresentadora Xuxa Meneghel para ser a embaixadora da campanha de vacinação no País, ainda em fevereiro. Em outro episódio, foi a responsável por trazer o ex-BBB Cezar Black, que é enfermeiro, para a cerimônia de sanção de proposta que garante R$ 7,3 bilhões para o piso nacional da categoria.

O engajamento da primeira-dama nas redes também fez o governo a reverter medidas que geraram repercussão negativa, como ocorreu no cerco à isenção tributária para grandes empresas varejistas da China. Janja entrou na jogada ao usar seu perfil no Twitter para defender que a taxação fosse aplicada apenas às empresas, e não aos consumidores —um deslize, já que qualquer aumento acabaria repassado ao consumidor. O “atropelo” de Janja, como apelidaram alguns petistas, gerou uma enxurrada de críticas, o que aumentou a pressão sobre Fernando Haddad, patrocinador da ideia. Para tentar amenizar o clima, ela postou uma foto sorrindo ao lado do ministro da Fazenda, com a legenda: “Intrigueiros ficarão decepcionados”. A tentativa de abafar a polêmica não colou e o governo teve de recuar da taxação.

DESCONFORTO Rui Costa (à esq.), Lula e Janja no anúncio do novo Bolsa Família. O ministro da Casa Civil é um dos “desafetos” da primeira-dama no Planalto (Crédito: Ton Molina )

Essa não foi a única saia justa. O papel da primeira-dama na demissão do militar mais próximo de Lula, o general Gonçalves Dias, o G. Dias, e a defesa que ela fez da desmilitarização do GSI atestaram que é uma importante estrategista do Planalto. O escopo da sua atuação vai além de temas nos quais se propôs inicialmente a atuar, ligados ao racismo, à insegurança alimentar e à violência contra as mulheres. E ela faz isso ainda que não exerça nenhum cargo formal, o que causa arestas. Segundo fontes do Planalto, a relação não é das melhores com outros dois nomes da Esplanada dos Ministérios. O primeiro “desafeto” da socióloga é José Múcio (Defesa), cuja relação está abalada desde 8 de janeiro. Na ocasião, em função dos atos de vandalismo de bolsonaristas, Múcio sugeriu a Lula que editasse decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), o que ela vetou de imediato por entender que a medida avalizaria o golpe de Estado. A relação dela também não é das mais harmônicas com o ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa. Um dos atritos mais recentes entre os dois ocorreu quando a pasta barrou a compra de alguns móveis para o Palácio da Alvorada, a residência presidencial. Ela tentou adquirir uma mesa orçada em R$ 200 mil, mas foi barrada por Costa, que tentou evitar um desgaste ao governo pelo alto valor da aquisição. Porém, conta a favor dela nessa contenda o histórico de relação de Costa com colegas da Esplanada, que não é dos mais favoráveis — ele é conhecido por dar longos chás de cadeira em ministros e por “passar por cima” de decisões de colegas.

Indicações

Em alguns dos casos, a relação conflituosa, segundo aliados do presidente, vem desde o governo de transição. Ela atuou na montagem do ministério, quando vetou o deputado Pedro Paulo (PSD) para assumir uma das pastas cedidas ao partido de Gilberto Kassab, em função de denúncia de agressão do parlamentar a sua ex-mulher, e emplacou a cantora Margareth Menezes na Cultura, uma das áreas em que se sente mais à vontade. Só não conseguiu levar a professora paranaense e ex-diretora de Itaipu Maria Helena Guarezi para o Ministério da Mulher porque o PT defendia um nome próprio do partido para a pasta, que acabou sendo o de Cida Gonçalves.

CAUSAS Janja comemora a recriação do Ministério da Cultura com sua indicada para a pasta, a cantora Margareth Menezes, em 29 de março. Abaixo, a primeira-dama visita a Terra Indígena Raposa Terra do Sol, em Roraima, junto com Lula (Crédito: Filipe Araujo/MinC)

Divulgação

O brilho da primeira-dama por vezes se choca com a discrição que tenta adotar publicamente. Além de evitar entrevistas, ela não quis dar declarações aos jornalistas Ciça Guedes e Murilo Fiuza de Melo, autores da biografia Janja, que classificou como uma obra com “imprecisões nos fatos e exageros nas interpretações”. O livro da editora Máquina de Livros estará à venda em maio e se propõe a traçar um perfil detalhado da socióloga desde a época em que se filiou ao PT até os dias atuais — várias histórias trazidas pelos autores ocorrem durante a época em que Lula esteve preso em Curitiba. ISTOÉ apurou que uma das “imprecisões” incômodas à socióloga trata de episódio narrado pelos autores da obra, em que ela foi surpreendida “por um bêbado, que partiu em direção ao seu grupo apontando uma arma para Manoel Caetano, advogado de Lula muito conhecido na cidade”. “Caetano protegeu Janja com o próprio corpo, evitando que o homem a reconhecesse”, afirmam. Aliados dela defendem que a história não é completamente verdadeira e foi dramatizada. Em nota, a primeira-dama disse que “a publicação precipitada do perfil tende a deixar de lado a devida reflexão sobre sua atuação profissional e política ao lado do presidente”.

“JANJANOMICS” Primeira-dama opinou sobre a taxação de lojas chinesas e criou uma crise para Fernando Haddad. Depois, disse que não conseguiriam intrigá-la com ele e tuitou um elogio ao ministro (abaixo) (Crédito:Ettore Chiereguini)

É natural, por outro lado, que sua atuação seja um dos temas mais comentados na atual gestão. Sua personalidade contrasta com a de outras primeiras-damas na história recente brasileira. E desperta comparações, por 3vezes maldosas, com outras líderes latino-americanas, como Evita Perón (o que uma revista argentina fez ainda antes da posse). Para a cientista política Olivia Cristina Perez, professora adjunta na Universidade Federal do Piauí (UFPI), o papel de Janja tem relação com o que as mulheres querem para si — e que os movimentos feministas estão exigindo há anos. “Estamos falando do protagonismo da mulher como uma pessoa que toma decisões, e não apenas que obedece às decisões dos homens.” Por outro lado, há um incômodo em setores da sociedade que não estão acostumados com isso. “É óbvio que incomoda, porque as mulheres e as primeiras-damas têm historicamente um papel no assistencialismo, na caridade com os pobres”, pondera a pesquisadora.

“A Janja tenta combinar o papel estratégico que se propõe a desempenhar com aquele tradicional de uma primeira-dama”, avalia Larissa Peixoto Gomes, pesquisadora da Universidade de Cardiff (Reino Unido). “Ela e Lula tentam demonstrar uma parceria, um casamento moderno do século XXI. Ela tem amizade com personalidades nas redes sociais, faz o coraçãozinho com a mão, tem outras referências mais jovens. O presidente não subiu a rampa sozinho, nem sozinho com Janja. Ele subiu com o Brasil ­— e se isso foi influência dela, não é uma influência ruim”, argumenta a cientista política.

Primeira Edição © 2011