Driblando a quarentena

Lições diárias de convivência

24/07/2020 08:46

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Hugo Taques

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Muitas coisas boas também aconteceram nesse período de isolamento social, até hoje com 120  dias e noites reclusos, circulando em pouco mais de 100m².  Por mais agradável que seja estar ao lado da família no aconchego do lar, haja criatividade e inspiração para defender do tédio e da aflição que poderia nos abater. Criar uma rotina nova depois de alguns contratempos lá no inicio foi vital para sobrevivermos. Dividimos tarefas, as vezes era preciso um cobrar do outro para executá-las, mas fomos criando hábitos. Mesmo assim eram muitas horas por dia para preenchê-las, relaxávamos um pouco para não ficar maçante e fomos descobrindo que existem infinitas possibilidades de ocupar  o tempo e espaço  com recursos e materiais disponíveis,  principalmente exercitando o lúdico,  a capacidade cognitiva e os talentos “ocultos” ou mal  trabalhados. Foi  nossa tábua de salvação.

Até as tarefas básicas, rotineiras, ganharam um pouco mais de leveza na execução. A cozinha nos uniu na preparação conjunta e divertida  das  refeições, cada um tinha uma receita nova e saborosa todos os dias, virou um laboratório de experiências gastronômicas.  Receitas  foi o assunto mais buscado na web, certamente. Sabe aqueles vídeos de dicas e truques mirabolantes que invadem insistentemente nossas redes socias? Pois é, entramos na onda e criamos, reciclamos, inventamos e  fizemos alguns deles, foi divertido. A esposa é professora de escolas públicas, não pararam e  praticamente  todos os dias têm reuniões virtuais  de trabalhos ( igual na vida real, muita conversa...), ela tem que preparar aulas, gerar conteúdos via plataformas para os alunos remotos, entrei na jogada para colaborar com ela aplicando velhos aprendizados nas artes cênicas, plásticas, musicais, etc. Fizemos teatro de bonecos, criamos jogos, cantamos e pintamos o sete. Os alunos adoravam, dava pra ver pelo feedback.  A filha, com as aulas presenciais  suspensas, está, compulsoriamente, assistindo pelo celular as maçantes e improdutivas cinco horas/ aulas/dia, não dá pra fazer nada, tem que cumprir.    Outra rotina que não tem graça nenhuma é lavar louças, roupas,  banheiros e limpar móveis. Arrumar cama, nem se fala, o pior, e dava pra ver entrando nos quartos. Mas cumprimos todas as tarefas  com esmero.  A prática diária ( ou quase diária) de atividades físicas mantivemos com muito esforço e suor até hoje, um motivando o outro, arrastando para a frente da tv na sala  para assistir aulas,  ( como as infinitas lives que proliferaram nessa pandemia pra todos os gostos, públicos e assuntos,  também descobrimos o quanto tem de profissionais, de “experts”, curiosos e metidos a bestas produzindo videoaulas de ginásticas), mas como temos uma excelente educadora física em casa, logo ela assumia o comando dos treinos. Ufa!!!  Galões de materiais de limpezas, pacotes de alimentos, cadeiras, tudo virou equipamento para treino. A velha bicicleta Caloi que não pode mais ir às ruas, virou bike fixa com uns pequenos ajustes,  e funcionou bem, pedalamos horas a fio todos os dias. O vão da porta de um quarto ganhou uma barra fixa para malhar os membros superiores;  câmaras de ar de pneus de bicicletas transformaram em elásticos  extensores para exercícios multifuncionais; lençóis velhos torcidos viraram cordas de pular, entre outras improvisações. Nessa tarefa fomos produtivos,  criativos e devemos manter enquanto durar e pós pandemia. Mesmo assim, com todos esses sacrifícios, o fantasma de um pequeno sobrepeso nos assombram  os quais encaramos com “certa naturalidade” pelo momento que vivemos, mas tentamos  combatê-los diariamente. 

Saiu da nossa rotina, assistir aos telejornais que só exibem ilícitos da classe politica e tragédias; passamos a consumir quase zero de produtos industrializados e mais natureba. Netflix, maratonamos, quase batendo “Os melhores” “Lançamentos” “Top10” e “Em alta”.

Aparelhos celulares, coitados,  circuitos queimados, telas quebradas, banhos no vaso sanitário e na pia, viciados em álcool 70%, e muita manutenção. Ah, minhas mãos também estão viciadas, quando tudo passar elas  terão  que fazer um tratamento para dependência alcóolica.

A professora, mãe e esposa, aproveitou o tempo para fazer uns cursos pela internet, culinária, meditação, saúde e segurança no trabalho durante a pandemia, computação ( com vistas à possibilidade de aulas hibridas após retorno das atividades escolares), automaquiagem, oratória, etc., etc. e etc. ócio produtivo.

Já, eu, fotógrafo profissional, que ficou sem trabalho nesse tempo todo e tentando se reinventar para se reposicionar no mercado (depois conto mais sobre isso), além de todas essas peripécias em família, dentro de casa, em isolamento, e motivado pelo excesso de tempo livre,   o lado artístico, criativo, que carrego desde muito cedo, deu uma despertada. Gravei vídeos tocando violão, cantando músicas e interpretando poemas para compartilhar em minhas redes sociais (por sinal muito acessadas e curtidas). Desenhei, pintei, esculpi dezenas de obras.  A casa está repleta das minhas invencionices artísticas. Uma coleção de máscaras , carrancas e  totens ocupam  espaços na sala e corredor. Nas gavetas dezenas de pinturas e desenhos guardam  momentos de inspirações revelados durante a pandemia. Na pasta, documentos, do word, várias crônicas e textos, com temas diversos. Adoro escrever, registrar com fotos  e palavras o que estou vivenciando, a exemplo, esta segunda narrativa das experiências na pandemia.

Claro, não vou mentir, houve alguns momentos críticos, de conflitos, afinal são três personalidades diferentes convivendo 24 horas por mais de 120 dias, sendo uma “ aborrescente” e mandona, o que coloca mais lenha na fogueira, mas como sempre tem um bombeiro por perto, os incêndios foram apagados no começo. Tudo isso nos fortaleceu, cada nova situação um aprendizado. Descobrimos mais um pouco de nós mesmos e do outro, pequenos e importantes detalhes que a correria de antes não nos permitiam enxergar. Estamos mais fortes e unidos, com mais amor e respeito mútuo.

Só está sendo doloroso ter que, diariamente, se lamentar, entristecer e chorar pelos amigos, conhecidos e anônimos  que partiram precocemente. É o lado triste dessa interminável e terrível pandemia causada pelo covid-19.

No mais, tudo bem, graças a Deus! Com saúde, vamos buscar o que perdemos e precisamos. Namastê!

Primeira Edição © 2011